Quando a Carla divulgou o tema, o meu pensamento recaiu imediatamente sobre este grande Senhor; não tive quaisquer dúvidas. E escrevo Senhor com letra grande porque de facto, é o que ele é. Li algumas obras dele e qualquer delas me encantou. Não são só as histórias mas a sua escrita que me envolve nos seus livros, de uma forma arrebatadora.
Como José Saramago se referiu à sua obra «o autor dá-nos o quase esquecido prazer de uma linguagem em que a simplicidade vai de par com a riqueza, (...), uma linguagem que decide sugerir e propor, em vez de explicar e impor».
Obras como “Ernestina”, “ O Rebate”, “La Coca”, e tantas outras, são tesouros da cultura portuguesa.
Embora neto e filho de gente de Trás-os-Montes, José Rentes de Carvalho nasceu em Vila Nova de Gaia e tem vivido a maior parte da sua vida no estrangeiro, mais propriamente na Holanda. Foi lá que se tornou conhecido tendo editado inúmeras obras entre elas ” Com os Holandeses” ,onde tece uma crítica feroz aquele povo, aos seus costumes e modo de vida e que foi um best - seller naquele país desde que foi publicado, em 1972.
Para além disso, é dono de um blog Tempo Contado do qual sou seguidora e onde me encanto, diariamente, com as suas publicações.
Para espreitarem um bocadinho da sua escrita e perceberem do que estou a falar, transcrevo um dos seus postes:
“Por ter andado longe, as recordações que tenho da casa de minha avó Elisa e do meu avô Sapateiro ficaram pelos dezoito, dezanove anos.
Entrei lá quando meu pai faleceu, vai fazer três décadas, e desde então, como se lhe tivesse posto um cadeado, faltava-me coragem para rever o cenário de muitas vivências de menino e rapaz.
Esta tarde, porque era preciso dar um jeito à porta de entrada, a sair dos gonzos, torta, esburacada por mais de cem anos de canícula e frio de rachar, desandei a fechadura, mas demorou a arriscar-me para lá da soleira.
Ruina, podridão, bafios maléficos, teias de aranha em filmes de horror, paredes abauladas, telhas partidas, os degraus de pedra-lousa meio-desfeitos, carcomidos os de madeira, desengonçado o corrimão.
Essa vista de olhos pouco deve ter durado, pois num repente tudo rejuvenesceu, se compôs, voltou ao seu lugar, ganhou vida. O lume ardia em volta das panelas de três pés, o chão estava coberto de amêndoas, o fumeiro e os presuntos secavam em varas lá no alto, os cântaros ressudavam água, alguém deixara uma albarda junto do escano. A luz vinha de um candeeiro enfarruscado. Vi-me menino, correndo escada abaixo, a aprender quanto grão se deitava na manjedoura das mulas.
Ouvi o carpinteiro dizer para sairmos dali, não fosse cair algum barrote, e então, mal acordado, fui às arrecuas, despedi-me do sonho, repus o aloquete nas memórias da minha infância.”
Carvalho, J. Rentes em " O Aloquete" Tempo Contado Abril 24
Encantador, não é?
Bem, como poderão constatar, com a admiração que tenho por este Senhor, não podia de forma alguma convidar outra pessoa para se sentarà minha mesa senão José Rentes de Carvalho.
Aceitou o meu convite e o meu pedido para uma pequena entrevista antes de passarmos à mesa. Essa entrevista transcrevo-a de seguida para ficarem a conhecer um pouco melhor o meu convidado.
Cinco ou seis vezes por ano. Vivo três meses em Amesterdão e três em Trás-os-Montes.
Traz muita coisa para estas estadas?
Trago. Faço quatro viagens de 2200 quilómetros.
Não vem de avião?
Não, sempre de carro, com uma grande tralha. A minha mulher traz sempre muita roupa com ela. Livros, coisas que não há em Portugal e levo da Holanda, e coisas que não há na Holanda e levo daqui.
O que é que não dispensa?
Coisas especiais, holandesas.
Para comer?
Sim, sim. Para lá vão chouriças, alheiras, pão-de-ló, bolo-rei.
O emigrante prende-se sempre pelo estômago.
É certo. É a saudade.
Sente muitas saudades?
Não, já tive. Saudades a sério foi quando fui obrigado a sair de Portugal. Estive 14 anos fora e vinha à fronteira de Miranda e não podia entrar. Isso é terrível.
Depois de se instalar na Holanda, em 1956, nunca pensou em voltar?
Não. Quando se deu a Revolução tive muitos convites para vir e tive de dizer uma coisa aborrecida. Vocês desculpem-me mas eu não acredito que a Revolução seja aquela que devia ser, portanto não vou. E esperei 30 anos e parece que de facto não foi a Revolução que devia ter sido.
Ainda trabalha muito na sua escrita?
Todos os dias.
É muito metódico?
Não, não sou. Sou muito aleatório. A única coisa que faço com regularidade para não perder a mão é o meu blogue.
Vê agora a reedição do "La Coca".
O "La Coca" é um livro mais de memórias e da estranheza de ter conhecido pessoas que eram um bocado bandidas mas românticas. Com a ganância do dinheiro foram do contrabando do whisky e do tabaco para o contrabando da droga.
Há sempre muito de si nos seus livros.
Mas eu minto muito. Desde miúdo que minto como o diabo, ninguém deve acreditar em mim. As minhas confissões são uma chapa de aço. De vez em quando surpreendo-me porque sei que estou a mentir a mim próprio, e acho graça.
Qual foi a maior mentira que já contou?
Ai, não digo. São todas terríveis.
A sua mulher também as ouve?
Também.
Já o deve conhecer de ginjeira.
Ela sabe que estou a mentir mas não faz perguntas. Já estamos juntos há 46 anos. Somos bons camaradas.
Tem um trajecto especial até chegar à Holanda. Brasil, Nova Iorque, Paris.
Ah, isso, tive uma vida deliciosa, cheia, mas que não recomendo a ninguém.
Porque não?
Porque fiz muitas coisas más. Andei metido com gente criminosa, salvei-me a tempo. Imagine que eu tinha uma escala de amizades que ia dos bandidos aos presidentes.
Óptima matéria-prima para escrever.
É, se nos conseguirmos salvar desse mundo. Na Bélgica tinha uns amigos da máfia italiana.
Mantém amizades cá?
O Francisco José Viegas e uma gente da lavoura. Poucos.
Escritor, jornalista, professor. É verdade que chegou a cursar Direito e Românicas ao mesmo tempo?
Eu na verdade não estudava. Andava à procura. Achei que a universidade não era para mim e acabou por ser 30 anos da minha vida, como ganha-pão.
Quando soube o que queria fazer?
Por volta dos 30 anos. Nessa altura vi- -me de um dia para o outro pai de três filhas num país estranho.
Que fazem as suas filhas?
Uma está num departamento de um grande banco contra a fraude. A outra é advogada e a terceira é artista gráfica, de topo. Trabalha para o Hermitage em Sampetersburgo.
Nenhuma escreve?
Não, não. Lêem os livros do pai mas eu acho que não gostam.
Não?
Não. Se o meu pai escrevesse livros eu também não quereria lê-los. E elas conhecem outro homem, em chinelos.
Para holandesas talvez as memórias de Trás-os-Montes digam pouco.
As memórias interessam mais ao neto e à neta, holandeses, claro. Sou o único em casa que fala português.
Quem está fora muitos anos por vezes sente o português preso.
Acha que eu tenho dificuldade?
Nenhuma, daí querer saber como o exercita.
Quando fui para França, o meu francês era tão bom que ao pedir o visto no consulado o senhor disse-me que os franceses não precisavam de visto. O francês foi durante quase dez anos a minha língua-mãe. Fui para a Holanda, onde passei a falar holandês.
Língua nada fácil, dizem.
Pois não. Os alemães dizem que não é língua; é um mal de garganta. Lá falava inglês e escrevia em português mas de repente comecei a sentir que as palavras fugiam de mim. Falo holandês, escrevo em holandês, mas penso em português. Não quero perder as raízes.
E como mantém a boa forma aos 80?
Tenho uma mulher fanática da educação física e do ioga, e eu na ginástica levava sempre zero. Digo uma coisa que ela não gosta: "A única ginástica que faço é pegar nas alças dos caixões dos amigos que faziam ginástica." São teorias tolas, claro. Ela gosta de legumes e a mim irritam-me os legumes, mas lá vou aguentando aquilo.
O que preparar:
- 4 trutas arranjadas e sem espinha central;
- 4 fatias de pão do tamanho das trutas;
- 4 fatias de presunto;
- 3 dentes de alho;
- Sumo de 1 limão;
- 0,5 dl de azeite;
- 50g de manteiga
- Salsa e sal a gosto.
Como preparar:
Limpar bem as trutas, tirar-lhes a cabeça e cauda bem como a espinha central. Temperá-las com sal, os dentes de alho ralados e o sumo de ½ limão deixando assim pelo menos 2 horas.
Levar um fio de azeite ao lume numa frigideira anti-aderente e fritar as fatias de pão. Em seguida, no mesmo azeite, fritar as trutas previamente escorridas e passadas por farinha. Deixar fritar cerca de 5’ de cada lado e dispô-las em cima das fatias de pão. Separar a gordura do presunto, picá-la e levar ao lume juntamente com o azeite, manteiga e o restante sumo de limão. Deixar ao lume até a gordura derreter deitando nesta altura salsa picada e apagando de seguida o lume. Colocar uma fatia de presunto por cima de cada truta e regá-las com o molho que esteve ao lume.
Servir com batatas novas cozidas.
E pronto, muito mais haveria a dizer deste senhor que, infelizmente, sempre foi mais (re)conhecido em Amesterdão do que entre nós, do que entre os seus. Mas, a esse comportamento, também já me habituei. Infelizmente.
E é com esta pérola da literatura portuguesa que venho participar na 5ª edição do Convidei para Jantar, desafio criado e lançado originalmente pela Ana e cuja anfitriã deste mês é a Carla no seu espaço que tanto gosto De Cozinha em Cozinha Passando pela Minha
Ofereço esta publicação ao meu querido e amado fifi "Picau" que hoje faz a linda idade de 24 anos; foi o terceiro milagre da minha vida.